Página da Autora Michele Machado Fernandes
Página da Autora Michele Machado Fernandes
Conheci meu amigo Caio quando estava na faculdade, foi minha orientadora quem nos apresentou. Ele foi o meu primeiro amigo gay ou pelo menos o primeiro com quem tive uma intimidade maior para conhecer seus conflitos. A propósito, Caio era esse tipo de pessoa que logo despeja em cima de você todos os seus sentimentos e angústias. Era muito fácil eu me perder dentro de seus pensamentos – escancarados como a beira do mar aberto – sem pontos-finais. Nem sempre o entendia, mas ele sempre me impactava.
As histórias de Caio vinham como tapas na minha cara ainda ingênua de quem acaba de sair de uma redoma de cuidados maternos. Prestei atenção no que ele me contou que havia acontecido naquela terça-feira gorda, “apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também”. Falava de um ataque de homofóbicos violentos. Eu não concebia que houvesse no mundo tamanho mal. Na verdade, eu sequer conhecia a palavra homofobia e de fato só passei a ter ciência desse conceito algum tempo depois, mas foi com meu amigo que vislumbrei seu significado.
A verdade é que havia algum prazer em Caio em chocar. Foi com grande despudor que ele contou a história de Gilda – ou era de Adelina? Eu ainda acreditava em contos de fadas e, com a minha pureza semivirginal, ficava aturdida, enquanto ele narrava detalhadamente as orgias dessa mulher com mais três homens. Minha face enrubescia. Pensaria nos meus pais dizendo: “não beba, não cante, não fale nome feio, não use vermelho, o diabo está solto, leva sua alma para o inferno”. Não obstante, Caio fazia minha mente se abrir e eu, aos poucos, descobria que o que muitos chamavam de decência era só uma palavra melhor para outra menos elegante: hipocrisia.
Caio também tinha um olhar atento para os detalhes que nem sempre ficam nos livros de registros quando me contou sobre aqueles dois. Eles trabalhavam juntos e executavam seu trabalho dentro da normalidade sem incomodar ninguém. Eram os outros que se preocupavam com eles mais do que lhes cabia e intervinham em suas vidas silenciosamente. Atentos Guardiães da Moral. De fato, foi com meu amigo que comecei a reparar nesses silêncios, nessas omissões, nas passagens não ditas e que mesmo quase imperceptíveis podem causar uma devastação na vida de alguém.
Caio era muito talentoso. Até teatro ele fez. Amava música. Falava não sei quantos idiomas. Mas gostava era de reparar nas coisas menos observadas como o gosto dos morangos ou um figo que se espatifa.
Caio me disse que os dragões não conhecem o paraíso. Eu pensava, com a minha interpretação limitada, que o dragão era ele mesmo. Se era isso, se conhecem o paraíso ou não, agora meu amigo já tem a resposta. É que Caio, soropositivo, morreu cinco anos antes de eu conhecê-lo. “Agora, agora, agora vou ser feliz”, ele diria. “Agora, agora, agora” A literatura de Caio Fernando Abreu foi uma das primeiras portas para que eu, encapsulada, conhecesse a vida fora da redoma.
* Nota: Li Caio Fernando Abreu pela primeira vez por volta de 2001 e escrevi esse texto por partes. Primeiramente, tomei como base apenas as minhas lembranças, o que justifica posicionar este texto na categoria de Memórias. Logo mais, reli alguns contos para poder associar minhas lembranças ao que realmente o autor escreveu. Meu objetivo aqui é mostrar a importância e o impacto que a literatura LGBT pode trazer aos leitores.
Conheci a minha vó já bem vovozinha. Olhinhos miúdos escondidos atrás dos óculos, cabelos de prata, gordinha, sentada na poltrona fazendo crochê. Quem como eu conheceu a minha vó nesse ponto da vida nem imagina ela jovem, bochechas rosadas, perninhas roliças e muito menos supõe a história que vou contar. Talvez eu não saiba a história completa, pois lá já se vão mais de treze anos da sua morte e preciso cerzir os rasgos da memória com os retalhos da minha imaginação.
Líria era o seu nome. Contou pra mim algum dia que seu pai ao fazer seu registro tentou pronunciar Lídia, mas acabou emitindo Líria. Havia bebido. Então ela virou uma Líria. Assim como se fosse a flor, mas não propriamente a flor. Ela não era um lírio. Era o seu feminino. Ela trabalhava, ela fiava... Não era um lírio.
Um dia, aos seus dez anos (ou nove, ou onze) lá ia ela, cabelinhos lisos atados numa fita bem fininha, vestidinho costurado por ela mesma, estrábica de um olho. Ela seguiu arrastando seus tamancos até um armazém. Assim como nós costumamos ir todo dia comprar pão, mas imagino que a minha vó não fosse todo dia porque não rezava sempre o Pai Nosso. Nesse dia ela foi. Chegando lá, pediu ao Seu Juvenal do armazém os itens que necessitava. Enquanto o Seu Juvenal embalava, ela observava alguns homens sentados em pequenas mesas dando goles numa bebida que vinha numa garrafa de vidro âmbar translúcido. Eles pareciam felizes, conversavam entre si com alegria, riam e, entre risos, um encheu um copo com o líquido misterioso. A cor amarelada parecia um sumo de ouro. Uma espuma bem branquinha quase transbordou do copo. Então o homem, penso eu que um senhor de bigodes, enfiou a sua boca rapidamente e ingeriu apressado o líquido dourado pra que não derramasse, fazendo em pouco tempo esvaziar o copo e, cheio de satisfação, encheu novamente daquela bebida que lhe deixava pleno de alegria. Seu bigode ficara cheio de espuma.
A pequena Líria, com os olhos radiantes, passeava pelos seus pensamentos a imaginar que coisa maravilhosa devia ser beber aquele líquido dourado. Logo previu sua chegada em casa com uma garrafa daquelas pra beber com a sua mãe. A sua mãe, minha bisavó, nunca teve nome pra mim. A única memória que tenho dela é duma foto em preto e branco numa lápide.
A sua mãe sozinha (o pai da minha avó morreu tão cedo) se esforçava em trabalhar pra criar os quatro filhos... A sua mãe merecia ter a mesma satisfação daqueles homens felizes sentados confraternizando nas mesinhas do armazém. A sua mãe...
- Menina!
- Ã?
- Suas compras.
Ela pegou o pequeno pacote de embrulho e já ia saindo do armazém quando se encorajou e voltou.
- Seu Juvenal, o que aqueles homens tão tomando?
- Cerveja.
“Ah, sim, cerveja”, ela deve ter pensado. Suponho que ela já devia ter visto outras vezes, ela já devia ter ouvido falar, mas, naquele dia, a ideia da cerveja passou a ter um sentido especial, pois foi quando resolveu que deveria levar uma garrafa pra casa, se sentaria à mesa com a sua mãe, e as duas confraternizariam felizes como os homens do armazém. Teriam um momento alegre.
- E quanto custa a cerveja?
Ele deu o valor, muito mais do que as suas poucas nicras poderiam pagar. Ela voltou pra casa ainda pensando no líquido dourado. Não tinha dinheiro pra comprar uma cerveja. Não tinha dinheiro, mas poderia conseguir. Ela sabia que havia um jeito. E qual era o jeito? O jeito era o jeito que as meninas pobres e sem pai de sua época tinham de conseguir dinheiro. O jeito era algo que ela já sabia, já tinha feito e faria de novo. O jeito era trabalhar.
A jovem Líria já era acostumada a contribuir com a receita da família, colocando suas pequenas mãos a pegar na faxina junto com a mãe. Muito oportuno porque seria assim que sustentaria sozinha a filha que teria aos vinte anos de idade, a quem eu conheço como “minha mãe”, a quem o pai abandonaria, a quem... Dos poucos trocados que ganhava, sempre que possível, separava uma pequena moeda, tentando não deixar que fizesse falta. Juntou, somou, contabilizou. Acho que assim que se tornaria boa na matemática apesar de ter estudado somente até a segunda série por conta de os livros serem muito caros.
Já com dinheiro juntado na mão, lá se foi ela ao armazém. Ao colocar o seu primeiro pezinho lá dentro do estabelecimento, sentiu sua boca salivar já imaginando o sabor especial que a bebida certamente tinha. Um homem chegava a cantar aos outros de tanta felicidade por beber o líquido de ouro. Ela puxou do bolso do seu avental um saco com todas as suas moedas. Sentiu até uma pontinha de orgulho ao colocar toda a sua fortuna sobre o balcão e dizer ao Seu Juvenal:
- Quero uma cerveja.
Talvez os homens tivessem olhado pra menina ousada que compraria uma cerveja, talvez eles tenham pensado que levaria ao pai, talvez (o que é mais provável) eles nem tenham reparado nela. O Seu Juvenal, então, pegou no frigorífico uma cerveja gelada, pôs sobre o balcão, pegou o saquinho das moedas e conferiu uma a uma. A Líria sentia aquela dorzinha na barriga dos momentos decisivos da vida. Aquele medo, aquela dúvida: será que tinha contado certo? O Seu Juvenal confirmou com um aceno de cabeça. Ela sorriu e voltou saltitante pra casa. No caminho, embora tentasse imaginar o sabor, não conseguia conceber como seria o gosto de algo que trazia tanta felicidade.
Ao chegar em casa, pegou os copos, se esmerou em abrir com dificuldade a garrafa, serviu a bebida já gritando “Mãe, vem ver o que eu trouxe pra gente!” e observava a espuma subir igualzinho ela tinha visto nos copos dos homens. A mãe chegou e freou parada diante da sua filha caçula, ainda a tempo de ver ela levar o copo à boca e se delici... de ver ela cuspir a bebida amarga, desagradável e sem a doçura esperada. O que havia de felicidade naquele copo dourado?
O esforço não poderia ser desvalido. Ainda que ruim, as duas beberam toda a garrafa em doses esparsas por vários dias, sabotando o sabor desagradável com colheradas de açúcar. Mas não houve alegria, só decepção, um bom preparo pra vida dura que viria depois.
Ah, minha Líria, ninguém disse pra que os homens te olhassem... Tão líria, no campo, bela, em flor,... Ninguém te viu enquanto trabalhava, enquanto anonimamente fiava o tempo pra que de ti saísse minha mãe e por ela outras gentes que silenciosamente também não são vistas. Ninguém te viu, mas eu te refaço aqui e agora com essas minhas palavras. A alegria, a riqueza, o sabor doce, as pessoas vão sentir. Sim, elas vão.
Contos de Samsara - Michele Machado Fernandes
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